“Tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu.” A melancólica abertura da canção Roda Viva, de Chico Buarque, ressoa como um eco de um sentimento popular diante da Ditadura Civil-Militar que se impôs no Brasil entre as décadas de 1960 e 1980. Lançada em 1968, quatro anos após a ascensão dos militares ao poder, a música já expunha, de forma perspicaz, os contornos fundamentais desse período de exceção. A “roda viva” – uma imagem potente de algo que gira implacavelmente – pode ser interpretada como uma metáfora direta para o aparelho estatal e militar em exercício de poder. Ela simboliza a imposição de limites à participação popular, a restrição dos direitos políticos e a agressão à integridade dos processos sociais e humanos do país, tal qual o eu-lírico expressa na primeira estrofe:
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega o destino pra lá.
A ditadura civil-militar brasileira chegou ao fim em 15 de março de 1985, há cerca de quarenta anos. Em vez de a transição ser acompanhada de um processo de justiça de transição que abordasse as inquestionáveis ilegalidades e violações de direitos humanos cometidas durante o regime, o caminho trilhado foi o oposto. Em vez de responsabilizar os envolvidos e oferecer alguma reparação, ainda que simbólica, às vítimas – compreendendo-se a sociedade brasileira em sua amplitude –, houve um apagamento quase sistemático dos crimes e da violência que se entranharam no cerne da sociedade. A Lei da Anistia, decretada por João Baptista Figueiredo, o último presidente do regime, concedeu o contraditório “perdão às vítimas” – pois não se perdoa quem não cometeu culpa –, mas também equiparou aqueles que sofreram violências de Estado com aqueles que as perpetraram. Isso desconsiderou e invisibilizou crimes graves como a censura, a tortura, os desaparecimentos e assassinatos praticados por agentes estatais ao longo dos mais de vinte anos de vigência do regime.
Nesse contexto, mesmo após o restabelecimento da capacidade de “cultivar a mais linda roseira que há” – outra metáfora de “Roda Viva”, para referenciar a democracia –, é imperativo atentar para um fator crucial da política nacional: a roda, em certo sentido, ainda pulsa. A ausência de punição para os responsáveis pelas graves violações que abalaram o bem-estar social do Brasil há quatro décadas permite que as matrizes da tirania persistam em nossa sociedade. Essas matrizes podem ser observadas em certos discursos e práticas políticas que, em momentos de instabilidade, encontram terreno fértil para se fortalecer e, como vimos recentemente, para retomar o poder.
A ditadura não foi um mero episódio isolado de exceção, algo atípico em um país supostamente pacífico, mas sim uma manifestação trágica de um construto social desigual, historicamente marcado pela violência contra seus povos originários e por uma estrutura aristocrática que perpetua seu poder através da manutenção da desigualdade. Ainda que possa parecer distante – se é que o é –, a memória das dores daquele período continua a assombrar a harmonia do tecido social, impactando a saúde das instituições, a plena cidadania e a vida de todos os brasileiros sob sua influência, bem como a própria democracia que deveria reger o maquinário institucional da nação. A memória histórica e a reflexão crítica sobre o passado emergem, assim, como as únicas salvaguardas capazes de proteger o futuro contra a repetição dos mesmos erros.
Nota da edição: O texto “A Roda Ainda Vive” é um ensaio reflexivo livre, de iniciativa e autoria plena do aluno Guilherme Garcia Amancio, sob supervisão do professor Hiran Mauá, do Colégio Prudente de Moraes. O ensaio articula memória, arte e crítica social para denunciar a permanência de traços autoritários na democracia brasileira. A partir da canção Roda Viva, de Chico Buarque, o autor propõe uma leitura simbólica e ética da história recente. Com linguagem densa e engajada, convoca o leitor à vigília crítica e à preservação da memória como forma de resistência. Salto-SP, junho de 2025.